quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Caso Eloá: uma visão crítica do ocorrido

CASO ELOÁ: UMA VISÃO CRÍTICA SOBRE O OCORRIDO


Na semana que se passou, assistimos a maior crise policial da história de nosso país. Com duração de 101 horas, o caso Eloá se estendeu por 5 dias e todos nós voltamos a atenção para a cidade paulista de Santo André. A imprensa cobriu ininterruptamente as negociações, que em alguns momentos pareceu surtir efeito, mas que infelizmente acabou de forma trágica.

Como profissionais da área, devemos abordar esse assunto com muito critério, pois o GATE de São Paulo é uma referência para todos os grupos táticos do país no quesito gerenciamento de crises, tanto na negociação quanto no uso do time tático ou snipers, entretanto iremos apontar de forma técnica os erros e acertos cometidos, frisando que não estávamos no calor dos acontecimentos, dentro de nossa visão doutrinária e prática.

Para começar, vamos conceituar a palavra CRISE, que vem a ser todo evento crucial que exige uma resposta especial da POLÍCIA, a fim de assegurar uma solução aceitável. Essa definição é uma construção da polícia federal norte- americana, o FBI, e deve ser desmembrada para melhor entendermos seu significado. Evento crucial é aquele evento importante, decisivo para um destino, portanto não é uma situação de normalidade, podendo ser interpretado como um evento fora do padrão. A resposta deve ser dada de maneira especializada, pois como é uma ocorrência nada convencional, requer pessoal especializado para desenvolver seu gerenciamento, o que deve ser feito por grupos especiais. Como nosso foco é a crise policial, essa resposta, além de especial, deve ser dada pela POLÍCIA e por mais ninguém, somos os responsáveis pelo bom desenrolar da crise, o que não impede de utilizarmos outras pessoas ou profissionais, mas apenas como nossos interlocutores e sempre acompanhados e protegidos pelos nossos policiais.

Vamos também situar os pilares básicos que regem o gerenciamento de crise, que são: SALVAR VIDAS e APLICAR A LEI. Sempre que a crise se instala, temos que ter em mente que iremos para o local com o intuito de preservar todas as vidas envolvidas, dos reféns, policiais e inclusive dos infratores. A crise bem sucedida é aquele que termina sem nenhuma morte. Depois de conseguirmos preservar as vidas envolvidas, iremos aplicar a lei. Essa aplicação está em segundo plano, em primeiro lugar vem a preservação das vidas.

Com essas definições, começaremos a análise do caso em pauta. Os primeiros passos a serem tomados diante de uma crise se resumem em três verbos reitores, quais sejam, CONTER, ISOLAR E AVALIAR.

A contenção é a centralização da ocorrência, isto é, ao nos depararmos com uma crise, não podemos deixá-la se espalhar. É muito mais fácil lidarmos com os marginais em um pequeno local, seja para negociar, seja para adentrar, do que em um local maior, com diversos cômodos. Ex. um indivíduo armado está em uma loteria, fazendo diversos reféns, não podemos deixá-lo dominar o quarteirão inteiro, ele ficará restrito ao local onde se encontra. É como o fogo, não podemos deixar com que ele se espalhe, é preciso contê-lo para que não queime a mata toda. Foi exatamente o que a equipe paulista fez, o tomador de reféns ou provocador do evento crítico - PEC (nome técnico dado ao seqüestrador nesses momentos) se limitou a ficar apenas no apartamento de Eloá, e não tomou o prédio inteiro. O primeiro verbo então foi superado.

Depois de conter, deve-se isolar a área, utilizando dos perímetros táticos, que são demarcações feitas com uso de barreiras físicas ou apenas imaginárias. Para tanto, demarcamos todo o local em três estágios. No primeiro, chamado de perímetro primário, só poderão ficar o negociador e times táticos, pois é o perímetro mais próximo do ponto crítico, e não deve ter nenhuma barreira física que impeça a rápida intervenção de uma ambulância por exemplo. O próximo perímetro é o secundário, onde irão ficar todas as pessoas envolvidas diretamente na resolução da crise. Como exemplo podemos citar os atiradores de precisão, restante do time tático, centro de comando da crise, ambulâncias, prestadoras de serviços públicos como COPASA, CEMIG, telefônicas, policiais convencionais que porventura conheçam o tomador. Esse rol é meramente exemplificativo. Entre o segundo perímetro e o terceiro, deverá ter uma barreira física, feita com fitas zebradas, viaturas, policiais militares etc. Por fim, demarca-se o perímetro terciário, o mais distante possível do centro da crise, também feito por barreiras físicas. Nesse perímetro, deverá ficar os curiosos que se aglomeram, a imprensa, parentes dos tomadores e dos reféns, enfim, todas aquelas pessoas que não estão diretamente ligadas à ocorrência. Nesse segundo verbo reitor, já vem uma crítica ao GATE. Não foi feita uma evacuação por completo dos apartamentos, por algum motivo os especialistas acharam melhor confinarem os moradores, talvez com o objetivo de não causar mais estresse dentro do cativeiro, com movimentação de pessoas, pois aparentemente a única saída era passar pelas escadas e estas ficam defronte ao apartamento invadido por Lindemberg. Podemos discutir também se os prédios vizinhos poderiam ser esvaziados, pois câmeras de televisão acompanharam ininterruptamente as negociações e movimentações da polícia, entretanto, como a polícia conseguiria retirar todos os moradores vizinhos ao conjunto habitacional de suas residências? Na prática muitas vezes temos dificuldades que não encontramos na leitura fria da doutrina. O segundo verbo, portanto, foi também realizado, contudo com essas ressalvas que são discutíveis.

Contida e isolada, a crise deve ser avaliada. Cabe aos policiais levantar todos os dados possíveis sobre os tomadores e reféns, como quantidade, tipos de armas utilizadas, motivação e perfil. Deve-se também procurar plantas do imóvel, assim como tentar acalmar os ânimos dos tomadores que com certeza estarão muito exaltados. Após esse conjunto de medidas, inicia-se uma primeira conversa com o tomador, que se for feita por um especialista denomina-se negociação. Quase sempre os primeiros policiais a chegarem no local não são os especialistas, mas nada impede o policial que ali está de iniciar um contato, sendo que este não deve oferecer nada ao tomador. A crise objeto desta análise foi devidamente avaliada, pelo menos no que diz respeito aos passos iniciais.

Passado essa primeira parte, o negociador estará em contato direto com o tomador. O capitão Giovanini, responsável pela negociação, estava desenvolvendo um belo serviço, conseguiu retirar três reféns e ganhava a confiança de Lindemberg. Mas o ponto fundamental que culminou com a tragédia, foi o retorno da adolescente Nayara ao ponto crítico. O gerente da crise, pessoa responsável por toda a operação veio até a imprensa dizer que a mãe teria autorizado, que a menina assumiu o risco de entrar, que era para a mesma ter chegado somente até as escadas etc etc etc. Nenhum manual decente de gerenciamento de crises do mundo ensina tal conduta. Como foi dito acima, cabe à Polícia gerenciar, negociar, invadir em último caso, e outras pessoas poderão nos auxiliar, mas sempre com nossa proteção. Era possível utilizá-la, já que o tomador garantiu que quando a visse na escada liberaria Eloá e se entregaria. Nayara deveria ter subido junto com um policial que a protegeria com o escudo balístico. O que vimos beirou o inacreditável, uma ex-refém que não corria mais nenhum risco voltou para próximo de seu algoz. A partir dessa volta, toda a equipe sofreu com a pressão vinda de todos os lados, mídia, sociedade, familiares, justiça, entidades protetoras dos direitos da criança e adolescentes, especialistas, leigos e pseudo-especialistas apareceram para emitir suas opiniões.

Um refém está em perigo a partir do momento em que se torna refém, exatamente por isso nunca devemos trocar um refém por outra pessoa que está do lado de fora, quem dirá colocar uma pessoa que acabara de sair para dar-lhe novamente o status de refém. Realmente essa parte foi inacreditável, foi o grande erro do GATE.

A melhor maneira de se gerenciar uma crise é a forma negociada, o adentramento tático deve ser a ultima ratio. Se o negociador perceber que o tomador está prestes a tirar a vida de algum refém, se reportará imediatamente ao gerente da crise, para que esse determine a entrada tática de seu time. A maioria das crises se resolvem sem a necessidade do uso de times táticos. Esses times devem ser extremamente bem treinados para realizarem uma entrada rápida e certeira, não havendo possibilidade de erros, caso contrário alguém poderá pagar com a vida, como aliás aconteceu em Santo André. No momento da invasão, o gerente deixou claro que não sabia que a equipe comandada por ele iria entrar, que só entraram depois de escutarem um tiro vindo lá de dentro. O negociador por sua vez estava em uma ambulância recarregando a bateria do seu telefone e também não foi avisado da decisão tática. Como pode isso acontecer? Os responsáveis diretos pelo gerenciamento não sabiam que o time tático invadiria. O que menos importa é se houve tiro anterior ou não à entrada, juridicamente não há crime quando agimos em legítima defesa de terceiros ou estrito cumprimento do dever legal, como querem alguns. O que importa realmente é se a intervenção tática já estava orquestrada entre toda a equipe.

Pois bem, tomada a decisão de fazer a entrada dinâmica, usaram uma carga explosiva na porta, mas demoraram aproximadamente 15 segundos desvencilhando das barricadas usadas atrás da mesma. É previsível que o tomador escore a porta principal com guarda-roupas, mesas, sofás. Deveria ter se pensado em todas as possibilidades. Enquanto a equipe tentava empurrar a barreira que se tornou a porta, um policial tentava desesperadamente subir por uma escada e passar por uma janela. Será que essa escada já não deveria estar posicionada? Esse policial que subiu e passou pela janela estava com sua arma presa ao coldre, se o tomador viesse ao seu encontro, correndo da sala para o quarto, certamente o atingiria sem dar-lhe tempo de reação. Não imputo como correto fazer uma tomada de imóvel de forma simultânea, ou se entra pela frente ou por trás, mas nunca simultaneamente, evitando assim o fogo amigo. Durante esses curtos 15 segundos, Lindemberg atirou três vezes contra as reféns, atingindo Eloá no abdômen e cabeça e Naiara na boca. Terminou dessa forma, duas reféns atingidas e o tomador preso.

Concluindo, o gerente de uma crise deve ser o policial com o maior grau hierárquico do grupo, mas de nada adianta patente sem conhecimento. Ele deve aliar treinamento e vivência operacional com o cargo que ocupa. Ao que parece, o comandante do GATE, gerente dessa crise, está há um mês à frente de sua equipe. Talvez não fosse o melhor momento para aprender a gerenciar uma crise, a não ser que ele já fosse um operador tático, e como estamos falando de longe, não podemos precisar sobre os seus conhecimentos. Outro questionamento apontado por todos foi o não uso do atirador de precisão. Ao se decidir pelo tiro de comprometimento, o atirador irá tirar a vida de uma pessoa, e será que a mídia e a sociedade irão aprovar? É fácil falar agora que deu tudo errado, mas tenho a absoluta certeza que diversas pessoas se levantariam berrando para os quatro cantos que deveria ter negociado um pouco mais, que não era necessária uma violência tão grande e coisas desse tipo. Entretanto esse caso será um marco em nosso país, após ele acho que o atirador vai ser sim usado, e vamos esperar as reações. Assim como o GATE errou nessa semana que se passou, o BOPE também já cometeu um grave erro no caso do ônibus 174, assim como a Scotland Yard errou ao matar o jovem Jean Charles, o confundindo com um terrorista. O que quero dizer é que equipes altamente profissionais e bem treinadas erram. O BOPE é uma referência mundial, assim como a polícia inglesa. Tenho a certeza que o GATE irá tirar muito proveito do seu erro para aprimorar mais ainda suas técnicas, e já numa próxima crise retoma seu lugar, pois é a melhor equipe brasileira de gerenciamento de crises com reféns.




Marco Aurélio Matos da Costa
Agente de Polícia
Ex-integrante do GER-DEOEsp (Grupo Especial de Regate)
Professor do TAP/ACADEPOL-MG (Técnicas de Ação Policial)

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